terça-feira, 27 de junho de 2017 0 comments

Eternamente presa na mesma narrativa

No meu primeiro ano de Faculdade, foi estabelecido um sistema de "ranqueamento" dos alunos do curso de Letras para que, a depender da nota, os alunos pudessem escolher as opções de carreira (vulgo, línguas) que pretendiam cursar. Aqueles que obtivessem a melhor nota, poderiam escolher as opções mais valorizadas, como Inglês, Espanhol, Francês e - pasmem! - Linguística. Os que obtivessem as piores notas sobrariam para cursos extremamente interessantes, mas pouco práticos em termos comerciais, como Armênio, Hebraico, Grego Clássico, Russo, entre outros. Por isso, havia uma grande competição entre nós, alunos.

Certa vez, cheguei à faculdade cedo e, nenhum dos meus amigos estava por lá. Vi, então, um grupinho de colegas conversando - aliás discutindo exaltados sobre a prova de Introdução aos Estudos Clássicos - e, ingênua, resolvi me aproximar:

- Ela colou!!! Aquela vaca! Ela colou!!!???
- Mas quem é essa Aline?

E todos apontaram para mim: - É esta!!!

Não, eu não havia colado. Eu apenas havia tirado 9,5 em uma prova. Não que eu fosse excelente aluna. Na verdade, na primeira prova  - a minha primeira prova na USP - eu havia tirado apenas 0,5 e de tanta vergonha, estudei como uma louca. Resultado: na segunda prova, eu quase gabaritei, e fiquei com a nota mais alta da turma.

Quando eu tirei 0,5, ninguém se incomodou. Poderíamos juntos falar mal do sistema, da professora, do cazzo... Ah... mas quem poderia lidar com meu 9,5, não é mesmo?



Se passaram quase vinte anos, e eu continuo presa na mesma narrativa...
segunda-feira, 12 de junho de 2017 0 comments

De volta às águas

O mar enrola na areia
Ninguém sabe o que ele diz
Bate na areia e desmaia
Porque se sente feliz

O mar também é casado
O mar também é feliz
É casado com areia
Seus filhos são os peixinhos...



Na última sexta-feira, voltei a nadar. Estava frio. Ainda que eu esteja no meio do Planalto Central, a piscina foi cuidadosamente projetada na sombra dos prédios, de modo que recebe sol apenas à tarde. Mas era preciso voltar às águas, voltar ao único lugar em que eu consigo respirar sem essa dor na garganta, que já dura um mês.

Filha de manezinha da ilha, minha vida sempre se passou perto das águas. Ainda que só pudéssemos viajar para Floripa nas férias, nasci em uma cidade bastante húmida. Meus pais gastam uma fortuna com mil estratégias para combater a humidade que provém do solo e das paredes do quarto do fundo. Sim, o quarto dos meus irmãos mais parece uma fonte do que um quarto propriamente dito. E qualquer tarde livre, sempre foi motivo suficiente para ir ao clube, ou, viajar uma horinha para a casa da vovó de Santos.

Mamãe conta que desde bebê, eu não podia ver uma poça d'água que já queria tirar a roupa para entrar:  [bebɛ, bebɛ], eu dizia. Certa vez, estávamos acampando na Praia do Santinho, e a pequena Aline, com apenas um ano e sete meses, levantou e correu ao mar. A sorte é que meus pequenos pezinhos não conseguiram alcançá-lo, antes que minha ausência fosse notada.

Na água, eu era tão forte quanto meus irmãos e primos. Cinco meninos, e a pequena (e descordenada) Aline. E como era gostoso estar entre eles. Passávamos tardes inteiras no mar. Nas águas, eu podia pular dos ombros do meu irmão mais velho, dar cambalhota, e até plantar bananeira. Depois, ficamos mais independentes, e então, desafiávamos o mar. O lance era ficar de joelhos, na água, de costas para mar, e só levantar no exato momento em que a onda chegava. E, claro, nem sempre dava tempo, e eu era jogada longe, rodando como um pião no meio da onda.

Na água, éramos também caçadores de marisco e berbigão. Lembro-me da Praia do Sonho, em que era possível recolher os pequenos seres - que eu adooooooooooooooro!!!! Um de nós ficava à espreita, observando quando viria a onda, enquanto os demais recolhiam as conchinhas em um balde. No final do dia, levamos nossa caça para mamãe cozinhar com apenas umas gotinhas de limão. A melhor refeição do mundo! a refeição que nós mesmos caçamos, tal qual as crianças Werekena que levam para suas mães as aves que abatem...

Ah... A aldeia... O Rio Negro, o Rio Xié, o Rio Içana, o Rio Waupés, o Igapé Anamoim. Por mais longe que eu tenha ido, por mais que os dias pudessem ser difíceis ou cansativos, sempre havia o rio. E em cada momento que eu me sentia arrebatada pela vida, era possível retornar às águas, e das águas retomar a vida... Um pouco como nado borboleta, em que vamos ao fundo dos mares e, quando não é possível mais continuar, regressamos com toda força, jogando água para todos os lados, atingido aqueles que merecem, e também  os que pretendiam ficar quietos...

quinta-feira, 8 de junho de 2017 0 comments

Brincando de Camões



Nos dois primeiros anos na Holanda, estive muito sozinha. Nos primeiros meses, havia ainda pesquisadores de pós-doutoramento e de doutoramento, mas no segundo ano, não havia mais ninguém. A tese era tudo o que importava. 

O escritório, no décimo segundo andar, tornou-se uma espécie de Torre de Marfim, da onde eu olhava o mundo e enxergava um tabuleiro de xadrez. O mundo real foi esvaindo-se, descolorindo, desaparecendo...

Certo dia, eu estava às voltas com um problema de fonologia. Para não perder tempo, resolvi descer ao térreo para almoçar. Como o enxadrista que antecipa as jogadas na mente, eu poderia continuar resolvendo o problema durante o almoço.

Ao chegar ao térreo, vi fumaça e muita gente. Concluí que perderia muito tempo para almoçar e, por isso retornei ao elevador para subir ao décimo segundo andar. Ao chegar, soou o alarme de incêncio. BUEMBA!!! Onde há fumaça, há fogo - "mais é inteligente demais essa menina", diria o tio Contador.

Como a minha sala ficava bem perto do elevador, fui rapidinho buscar os papéis com narrativas em Nheengatu. Então desci os doze andares, caminhando, tranquilamente, com a tranquilidade dos holandeses que eu encontrava no corredor.

Ao chegar ao térreo e sair do edifício, percebi que estava nevando e eu havia esquecido o casaco. Afinal, por que lembrar do casaco que protege o corpo, quando era preciso salvar as narrativas em Nheengatu que alimentam a mente?

Naquele tempo, o mundo real nem existia...


 
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