quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

A Descoberta

Capitu deu-me as costas, voltando-se para o espelhinho. Peguei-lhe dos cabelos, colhi-os todos e entrei a alisá-los com o pente, desde a testa até as últimas pontas, que lhe desciam à cintura. Em pé não dava jeito: não esquecestes que ela era um nadinha mais alta que eu, mas ainda que fosse da mesma altura. Pedi-lhe que se sentasse.
— Senta aqui, é melhor.
Sentou-se. Vamos ver o grande cabeleireiro, disse-me rindo. Continuei a alisar os cabelos, com muito cuidado, e dividi-os em duas porções iguais, para compor as duas tranças. Não as fiz logo, nem assim depressa, como podem supor os cabeleireiros de ofício, mas devagar, devagarinho, saboreando pelo tato aqueles fios grossos, que eram parte dela. ( continua aqui).

Suspiros... a menina de 11 anos, ela-mesmo-eu, se instala. O texto estava lá, perdido no meio do livro de quinta série. Um livro horroroso, capa branca de letras vermelhas, com o símbolo do SESI para todo lado, sem graça nenhuma... Mas capa não conta história e, lá dentro, perdido entre uma lição e outra, deparei-me com esse menino atrevido fazendo um penteado. Naquela época, não havia para mim nenhum Machado de Assis, nem Dom Casmurro, nem Bentinho... Apenas Capitu aparecia ali, tão-o-que-eu-queria-ser, ganhando o primeiro beijo. Nesse tempo, eu imaginava como era esse negócio de beijar - devia de ser bom, porque mamãe que sempre foi tão pacífica, ameaçava-me com uma chinelada só de pensar ...

Não sei quanto tempo se passou, um ano talvez, e lá na estante da sala, só para o meu irmão mais velho ler, estava Feliz Ano Velho. Eu queria tanto ler! Mas a mamãe fez terrorismo sobre ser um livro para o Flávio  - eu não estava pronta ainda! Ah! Essas mães que não batem, mas que sabe-se-lá-como despertam medo. Como sou muito corajosa, inventei para mim mesma que o livro era muito grosso. E como lógica não estava entre os meus fortes, estabeleci uma meta: leria o livro-mais-grande-da-estante e, se conseguisse, seria adulta o bastante para enfrentar Marcelo Rubens Paiva.

Vejam bem, a estante da sala não era nenhuma biblioteca dos sonhos. Dos sonhos, havia apenas a coleção de Monteiro Lobato. O restante do acervo havia sido composto à medida que os nossos professores iam pedindo. Meus pais, um projetista e uma auxiliar de enfermagem fantásticos, não tiveram a chance de ir para a universidade, mas sabiam que nós, as crianças, chegaríamos (e chegamos!). Pois bem, havia também uma enciclopédia, comprada pela mamãe no INAMPS (nada de livraria, enciclopédia se compra com caixeiro-viajante). Uns dez livros cor-de-burro-quando-foge, três livros amarelos de culinária, e três livros cinzas, com a palavra Clássicos grafada em prateado na lômbada. Não sei qual o critério, mas havia ali Schopenhauer, Erasmo de Roterdã e Machado. E não é que era bem o livro da Capitu!





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